Som na caixa

31.10.08

EU PECADOR Nicanor Parra

eu galã imperfeito
eu dançarino à beira do abismo,eu sacristão obsceno
menino prodígio das lixeiras,eu sobrinho – eu neto
eu confabulador de sete solas,eu senhor das moscas
eu esquartejador de andorinhas,eu jogador de futebol
eu nadador de Estero las Toscas,eu profanador de tumbas
eu satanás enfermo de papeiras,eu conscrito remisso
eu cidadão com direito a voto,eu pastor de ovelhas do diabo
eu boxeador vencido por minha sombra,eu bebedor insigne
eu sacerdote da boa mesa,eu campeão da cueca*
eu campeão absoluto do tango
da guaracha, da rumba, da valsa,eu pastor protestante
eu camarão, eu pai de família,eu pequeno burguês
eu professor de ciências ocultas,eu comunista, eu conservador
eu recopilador de santos velhos,(eu turista de luxo)eu ladrão de galinhas
eu bailarino imóvel no ar,eu verdugo sem máscara
eu semi-deus egípcio com cabeça de pássaro,eu de pé em uma rocha de cartão:
façam-se as trevas
faça-se o caos,
façam-se as nuvens,eu delinqüente nato
surpreendido em flagranteroubando flores à luz da lua
peço perdão a torto e a direito
mas não me declaro culpado.*dança nacional do Chile

eu galã imperfeito
eu dançarino à beira do abismo,eu sacristão obsceno
menino prodígio das lixeiras,eu sobrinho – eu neto
eu confabulador de sete solas,eu senhor das moscas
eu esquartejador de andorinhas,eu jogador de futebol
eu nadador de Estero las Toscas,eu profanador de tumbas
eu satanás enfermo de papeiras,eu conscrito remisso
eu cidadão com direito a voto,eu pastor de ovelhas do diabo
eu boxeador vencido por minha sombra,eu bebedor insigne
eu sacerdote da boa mesa,eu campeão da cueca*
eu campeão absoluto do tango
da guaracha, da rumba, da valsa,eu pastor protestante
eu camarão, eu pai de família,eu pequeno burguês
eu professor de ciências ocultas,eu comunista, eu conservador
eu recopilador de santos velhos,(eu turista de luxo)eu ladrão de galinhas
eu bailarino imóvel no ar,eu verdugo sem máscara
eu semi-deus egípcio com cabeça de pássaro,eu de pé em uma rocha de cartão:
façam-se as trevas
faça-se o caos,
façam-se as nuvens,eu delinqüente nato
surpreendido em flagranteroubando flores à luz da lua
peço perdão a torto e a direito
mas não me declaro culpado.




*dança nacional do Chile

ADVERTÊNCIA AO LEITOR Nicanor Parra

O autor não responde pelos incômodos que possam causar seus escritos.
Apesar dos pesares
o leitor deverá dar-se sempre por satisfeito.
Salebius, que além de teólogo foi um humorista consumado,
depois de ter reduzido a pó o dogma da Santíssima Trindade
será que respondeu por sua heresia?
E se chegou a responder, como é que fez!
Em que forma desbaratada!
Apoiando-se em que cúmulo de contradições!Segundo os doutores da lei este livro não deveria publicar-se:
a palavra arco-íris não aparece nele em parte alguma,
menos ainda a palavra dor,
a palavra torquato.
Cadeiras e mesas é que aparecem a granel,
Ataúdes!, utensílios de escritório!
o que me enche de orgulho
porque, no meu modo de ver, o céu está caindo aos pedaços.Os mortais que leram o Tractus de Wittgenstein
podem bater com uma pedra no peito
porque é uma obra difícil de encontrar-se:
mas o Círculo de Viena foi dissolvido faz tempo,
seus membros dispersaram sem deixar rastro
e eu decidi declarar guerra aos cavalieri della luna.Minha poesia pode perfeitamente não levar a parte alguma:
“os risos deste livro são falsos!”, argumentam meus detratores,
“suas lágrimas, artificiais!” “Em vez de suspirar, nestas páginas a gente boceja”.
“Dá patadas como criança de colo”.
“O autor faz-se entender pelos espirros.”
De acordo: convido-os a queimar vossas naves,
como os fenícios pretendo criar meu próprio alfabeto. Então, por que molestar o público?, perguntarão os amigos leitores:
“Se o próprio autor começa desprestigiando seus escritos,
que se pode esperar deles!”
Cuidado, eu não desprestigio nada
ou, melhor dizendo, exalto meu ponto de vista,
vanglorio as minhas limitações
ponho nas nuvens minhas criações. Os pássaros de Aristófanes
enterravam suas próprias cabeças
os cadáveres de seus pais
(cada pássaro era um verdadeiro cemitério voador).No meu modo de ver
chegou a hora de modernizar esta cerimônia
e eu enterro minhas plumas na cabeça dos senhores leitores!


Extraído de Poemas y antipoemas. 1954.

28.10.08

A preguiça Andrêi Andrêievitch Vozniessiênski

Abençoada preguiça, que delícia de armadilha,
quando é tanta que nem me levanto, nem durmo de novo.

Preguiça de atender o telefone. Você o alcança,
passando uma perna por cima de meu corpo,

ouço a sua voz pertinho de mim, soando como um sino,
e meu estômago é comprimido pelo seu ombro.

" Entradas?" - diz você - " Que vão para o diabo. Ai, que preguiça!"
Dentro de nós, a lentidão dos dias mergulha na sombra,

A preguiça é o motor do prpgresso. A chave para Diógenes é a preguiça.
Só o que sei é que você é encantadora-
o resto é lixo.

Este mundo é feio? Dê um jeito de ir levando.
Preguiça de ir pegar o telegrama- passe-o por baixo da porta.

Preguiça de ir jantar, preguiça de apagar a luz,
preguiça até de terminar a frase:
hoje é segun...

Nesta estrada, o mês de junho,
bêbado, derramou-se:
sátiro com pés de bode
descalços- e usando shorts.
" a sua pupila e a sua íris olham na mesma direção"


de um amante para mim

22.10.08

Hoje cedo aprendi a cobiçar pestana, pele fina dentre as peles, pele esperta.
Ainda quando o sol não desmascarava os ritos, observei a camada fria e morna que envolve uma maçã, o que talvez tranquiliza uma maçã mas que entorpece minha idéia sobre o que é ser uma maçã.
Não lembro traçar paralelos entre pele e pele, nem ter desejado a convicção de uma pele ser mesmo uma pele,
mas lembro, agora me lembro dos pequenos motivos que dei a esses dois destinos, pestana e casca, deixadas ao risco de um olhar sentido, de um olhar afoito de desejos, de um olhar explicitamente carnal.
Sobre a chaleira a vaporização das ervas aromáticas com as quais nebulei meu dia, e entranhei-o . Saí da berlinda, do ponto de apoio, para estar ao pé das impressões com as quais não se adquire nada.
Beneficios  do prazer. Curioso, que eu tenha visto peles e que bem dentro da pele eu veja pele.
Ao cheiro que fervia na chaleira, em seu vermelho, em seu mais de um vermelho, a casca daquela maçã, dura, convicta, distribuída ao peso da cor.
O olhar respondia. Ao abrir dos olhos( pestana em porta) e em seu contrário( pestana em pouso)
Agora a transfusão de texturas deflagra no cérebro,
que ainda não se confundiu ao cotidiano, o que permanece como memória sensorial. Celebro.

19.10.08

como as coisas que recortam, dóem como se desata um nó.

2 poesias de Orides Fontela

Fala

falo de agrestes
pássaros de sóis
que não se apagam
de inamovíveis
pedras


de sangue
vivo de estrelas
que não cessam.


Falo do que impede
o sono.




=====================



Eros II


O amor não


o amor não
ouve

o amor não
age

o amor
não.

16.10.08

nunca admiti uma clara diferença entre viver e escrever; se ao viver consigo disfarçar uma participação parcial nas minhas circunstâncias, não posso porém negá-la no que escrevo porque escrevo precisamente por não estar ou estar só pela metade



e gosto disso, e sou terrivelmente feliz no meu inferno, e escrevo






Júlio Cortazar